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Friday, April 08, 2005

 

A Reforma das Nações Unidas

Já vão uns dias da sua publicação, mas finalmente arranjo tempo para uma leitura mais detalhada e cuidadosa do Relatório do Secretário Geral das Nações Unidas, «In larger freedom: towards development, security and human rights for all».
E podemos até começar pelo título. De facto, Kofi Annan, ou quem escreveu o relatório em seu nome, arranca com uma piscadela diplomática aos Estados Unidos, pela referência que faz às três liberdades mencionadas por F.D. Roosevelt a propósito da fundação da Organização das Nações Unidas.
Começa num tom optimista, ao indicar vontade, e crença na possibilidade de, nada mais, nada menos de diminuir a pobreza global para metade, parar o alastramento das principais doenças conhecidas, reduzir a prevalência de conflitos violentos e terrorismo, bem como aumentar o respeito pela dignidade humana em todos os países. Nobres intenções. E como as implementar? Duh! Obviamente forjando um conjunto renovado de instituições internacionais.
Com coragem, decisão, peito cabeludo e uma cauda frondosa – e em conjunto, não convém esquecer – as pessoas poderão estar globalmente mais seguras, mais prósperas e mais capazes de gozar os seus direitos humanos fundamentais.
Podemos então ficar descansados. Com o novo milénio abrem-se as portas do Paraíso Terrestre para a espécie humana. Existe consenso internacional para tal, pelo menos em muitas das partes. Infelizmente, não em todas. O mesmo consenso existe relativamente ao desejo de reformar (mais à frente isto traduz-se por equipar e fornecer recursos) a ONU.
Sem dúvida que os objectivos propostos por Annan são globalmente consensuais. Bastaria, de facto, que a ONU conseguisse definir alguns termos utilizados tão à vontade neste relatório, como «terrorismo» ou «direitos humanos fundamentais». Mas, como é claro, não consegue. Mas vamos até dar de barato que os objectivos são de facto consensuais. Tão importante como definir objectivos, é definir estratégias de como os alcançar – numa nota à parte, algo que o primero-ministro Sócrates vai descobrir rapidamente – já que é mais na escolha e adequação de meios do que na definição de metas estratégicas que as politicas são avaliadas.
Assim temos, que basicamente o que a ONU pretende avançar com o Consenso de Monterey – Kofi Annan não entende, ou faz que não entende que as circunstâncias sob as quais foi alcançado esse consenso já não existem – e ao mesmo tempo lançar as bases para um governo mundial regido pela ONU. Falta aqui, evidentemente, a percepção de quais as motivações que existem para que o mundo «desenvolvido» se submeta alegre e confiadamente a um mundo dito «em desenvolvimento» - sub-desenvolvido já não é politicamente correcto – governado, na sua esmagadora maioria, por ditaduras sem qualquer tipo de legitimidade democrática. Sem dúvida que o relatório coloca por diversas vezes o dedo na ferida, ao indicar – nomeadamente no que respeita a África – como uma das principais causas para o sub-desenvolvimento (como não trabalho para a ONU não tenho que ser politicamente correcto) a corrupção generalizada. Por ironia do destino, Kofi Annan teve que provar, na sua própria família, um exemplo desta corrupção quase em simultâneo com a publicação deste relatório.
Por forma a alcançar estes objectivos ambiciosos, a ONU propõe que os países desenvolvidos dediquem ao auxílio ao desenvolvimento uma percentagem muito superior à actual apontando para 2015 uma meta de 0.7% do PIB. Dito assim, nem parece muito: até já existem hoje alguns países que dedicam esta percentagem ao auxílio ao desenvolvimento. Este auxílio é proposto como contrapartida para a luta contra a corrupção, o avanço da escolaridade, uma maior igualdade entre sexos, perdão de dívida externa e por aí fora. São objectivos dispendiosos, mas sem dúvida merecedores da aplicação de recursos. O que não se vê são os mecanismos que permitam a implementação destas políticas. Infelizmente, o que o relatório aponta é apenas o despejar de mais dinheiro no poço sem fundo que é a corrupção.
O relatório não deixa de lado os aspectos da segurança colectiva. Entre críticas veladas às principais potências, nomeadamente à sua – natural – relutância em assignar tropas para operações de «peace keeping»/«peace enforcement» no quadro das Nações Unidas, já que estas tantas vezes se destinam apenas a servirem como mais reféns – basta lembrar o massacre de Sbrenika e o papel que os capacetes azuis holandeses tiveram no mesmo. Como solução, o relatório aponta um reforço também do papel militar da ONU. No entanto, entra aqui em contradições importantes com conceitos como «soberania», «estado» e quejandos. Nomeadamente ao pretender que a ONU disponha de um conjunto permanente de forças a si assignadas, teríamos assim o segundo pilar para o governo mundial: Forças Armadas permanentes. A intenção é boa, no entanto, como diz correctamente a sabedoria popular, de boas intenções está o inferno cheio. Atribuir à ONU o comando sobre forças militares – num mundo «ONUniano» ideal, o comando sobre todas as forças militares – esvazia mais uma competência do estado-nação. Claro que se pode argumentar que o estado-nação é um conceito eurocêntrico e ultrapassado. Se é uma semi verdade que o este conceito é puramente ocidental – temos as excepções não ocidentais de, pelo menos, China e Japão – não é menos verdade que as regras de funcionamento de uma organização do tipo da ONU apenas não determinam a sua parilisia completa quando os valores que determinam a essência de «bom governo» são compartilhados pelos seus estados membros. Este consenso não existe, nem parece possível que alguma vez possa vir a existir. Seguindo esta via, o melhor que poderia ser esperado, seria uma nivelação por baixo. De facto a um nível tão baixo que o conjunto de normas expressas na «Carta dos Direitos Humanos» teria que ser drasticamente revisto. Voltando ainda à questão das forças militares, é dificilmente credível pela parte dos estados soberanos a cedência do seu direito de decisão sobre questões tão importantes como a guerra e a paz.
No entanto, como antes, Kofi Annan diz que com mais recursos lá se fazia o necessário. Bastava, claro, que os países desenvolvidos colocassem as suas forças armadas ao serviço da ONU. Podemos, é claro, arranjar uma cadeira confortável para ficarmos à espera que isto um dia aconteça. Tal como qualquer um pode arranjar uma cadeira confortável e ficar à espera que eu me suicide.
Mas as partes mais interessantes deste documento ficam reservadas para fim: primeiro, a reforma do conselho de segurança, depois os compromissos a assumir pelos chefes de estado.
As propostas para a reforma do conselho de segurança, afinal de contas o organismo mais poderoso da ONU, são uma desilusão. Onde foi parar a firmeza, decisão, peito cabeludo e cauda frondosa do secretariado da ONU? Quem sabe? De facto, este documento limita-se a apontar duas configurações alternativas, qualquer delas bastante relutante e conservadora. Em qualquer das propostas, não existem novos membros com direito de veto. OK, é uma tentativa de não contrariar excessivamente os actuais membros permanentes. São assim apresentadas duas configurações, simpaticamente designadas como modelo A e B.
No modelo A, teriamos uma adição de 6 membros permanentes, no entanto sem direito a veto, distribuidos da forma seguinte: 2 para a África, 2 para a Ásia/Pacífico, 1 para a Europa e 1 para as Américas. Para membros não permanentes, a distribuição seria a seguinte: 4 para África, 3 para Ásia/Pacífico, 2 para Europa e 4 para as Américas. Isto daria uma representação proporcional de 6 membros por cada grupo geográfico, mantendo-se os actuais membros permanentes com direito a veto: 1 para Ásia/Pacífico (República Popular da China), 3 para a Europa (Reino Unido, França e Rússia), e 1 para as Américas (Estados Unidos). Os membros não permanentes, tal como hoje, teriam mandatos de 2 anos, não renováveis. Este é o modelo que implica um menor conjunto de alterações. Claro que tem o problema suplementar de decidir a que países seriam atribuídos os novos assentos permanentes. No conjunto África, temos pelo menos três ou quatro contendores sérios: República da África do Sul, Nigéria, Egipto e eventualmente Argélia ou Marrocos. Por forma a assegurar uma representação islâmica no Conselho de Segurança, as escolhas recairiam provavelmente sobre um dos países da África Negra, e outro do Magreb. Digamos África do Sul e Egipto. Relativamente à Europa só existem dois candidatos sérios: Alemanha e Itália. Podem ainda mostrar-se interessados a Espanha ou a Polónia Digamos a Alemanha. Na região Ásia/Pacíico é que este modelo mostra as suas falhas. Existem apenas 2 lugares propostos para quatro candidatos sérios e com a potencialidade e músculo suficientes: India, Japão, Indonésia e Paquistão. Numa segunda linha, poderiamos acrescentar ainda o Irão, o Iraque, o Vietname e a Austrália. Para o segundo membro permanente das Américas penso que o Brasil seria consensual.
Quanto ao modelo B, teriamos uma nova categoria de assentos não permanentes, mas renováveis, eleitos por quatro anos com 8 novos membros, mantendo-se os actuais 5 membros com direito a veto, e um novo membro não permanente com um mandato de dois anos, não renovável, para o mesmo total de seis membros por área regional. Aqui vê-se claramente a intenção de uma proposta mais consensual para a distribuição dos lugares mais desejados. No entanto, este tipo de distribuição, apesar de parecer mais democrático, não resolve os mesmos problemas fundamentais: como distribuir três lugares «especiais» entre quatro, cinco ou mais candidatos fortes, pelo menos no que diz respeito à região Ásia/Pacífico. De facto, o fulcro de qualquer tentativa de reequilibrio na composição do Conselho de Segurança acaba sempre por incidir na região Ásia/Pacífico. Não em África, onde Kofi Annan coloca provincianamente as suas esperanças, mas na região mundial que apresenta uma maior dinâmica – e também um maior desafio, por muito que se tente mascarar. Os maiores desafios mundias hoje, por muito que custe ouvir, travam-se à volta de pólos asiáticos: no Extremo Oriente, China, Japão e até pesos relativamente leves como as Coreias, Malásia ou Vietname, no Médio Oriente com o Irão, Iraque, Israel e a Arábia Saudita. Na Ásia Central onde a confrontação e ‘appeasement’ entre as potências nucleares que são a India e o Paquistão escondem uma teia de médias potências regionais, resultantes da decomposição da esfera de influência eslava, que é lentamente mas irreversivelmente tecida.
Nas considerações finais, o relatório propõe a dissolução do ‘Trusteeship Council’, tornado desnecessário com a finalização da descolonização, bem como a eliminação das cláusulas que fazem referência a ‘inimigos’ nos artigos 53 e 107 da Carta das Nações Unidas, bem como a eliminação do Comité Militar referido previsto no artigo 47 e mencionado nos artigos 26, 45 e 46. Temos no meio os habituais incitamentos à revitalização do papel da Assembleia Geral, que são irrelevantes, já que é inaceitável dar qualquer tipo de poder a este orgão, dada a sua irresponsabilidade intrinseca. Podemos ainda adicionar uma demasiado atrasada reforma da Comissão dos Direitos Humanos – onde hoje pontificam alguns dos estados com piores registos nesta matéria – e os inevitáveis apelos a a mais fundos/recursos.
O relatório termina com as mesmas referências a F.D.Roosevelt presentes no início: fica-se na dúvida se para reforçar os pontos iniciais, ou se é tão só destinado aos que apenas lêm as páginas iniciais e o fim da história.
O apêndice refere as decisões que os chefes de estado deverão subscrever, e quais os compromissos a assumir. Kofi Annan não tem dúvidas: o milénio está ali mesmo ao virar da esquina, mesmo ao alcance da mão, só é preciso é dar mais poder à burocracia das Nações Unidas!
Mais poder à burocracia? Onde é que já ouvi isto?

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